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domingo, 16 de junho de 2013

“Vândalos e terroristas” Por Arlan Leite.




Eis a construção conceitual da imprensa elitista e de direita, corroborada pelos setores mais reacionários e conservadores brasileiros, sobre os movimentos populares no espaço urbano. Por que a imprensa elitista, que elabora e ressignifica suas identidades fora do Brasil, que vive na terra do carnaval, do futebol e também da corrupção, mas tem uma visão de mundo a partir da Europa ou dos Estados Unidos, nomeia os movimentos populares, por exemplo, do mundo árabe, de “manifestantes” e não de “vândalos”?

No Brasil, diferentemente de outras experiências históricas, o grande problema foi não incluir a maioria. A maioria do povo não é incluída social, político e economicamente. A independência política brasileira, um arranjo da elite, foi instituída à revelia do povo. Povo? Havia uma população sem cidadania incluindo uma grande massa de escravos, os quais eram completamente desprovidos de qualquer igualdade. A República, um acordo entre militares e elite em ascensão político-econômica, também foi produto do conchavo em detrimento da participação popular. Os setores populares assistiram a mudança de regime político sem entender direito o que estava acontecendo. A despeito disso, esse mesmo povo participa de alguma forma.

Com a promulgação do Código Criminal de 1830, a elite política procurou controlar com toda a força possível os “negros escravos, vadios e mendigos”, os quais vão ser classificados como criminosos e contraventores. Para tanto, a criação de uma força militarizada foi importante para manter a ordem no espaço urbano. Em 1809, ainda no período da presença da corte portuguesa no Rio de Janeiro, foi criada a Guarda Real de Polícia da Corte. 

Segundo o historiador Marcos Bretas, devido à situação social da colônia brasileira, mormente do espaço urbano carioca, onde apresentava uma classe social escravizada, entendida como propriedade dos membros da elite, a polícia era um exército permanente travando uma guerra social contra adversários que ocupavam o espaço a seu redor. A força policial aparecia como um exército no espaço da cidade apenas para reprimir severamente as manifestações ou greves dos trabalhadores e, depois da missão, ela desaparecia recolhendo-se à sua sombria existência, até a eclosão da próxima greve. A repressão era brutal e, nesse período, houve a figura do major Vidigal que utilizava um sabre (chicote) para supliciar os negros escravos, mendigos e vadios.

A elite política promulgou o Código Penal de 1890, antes mesmo da própria Constituição republicana, para exercer um novo controle de repressão às classes populares, uma vez que os escravos eram livres, entretanto eram considerados uma “classe perigosa”. Daí as legislações penais complementares irão nomear novos contraventores, a partir das novas manifestações contrárias à ordem do Estado. “Vagabundos, mendigos, prostitutas, capoeiras, ébrios” e, a partir de 1908, serão incluídos os “desordeiros”, a fim de atingirem os manifestantes políticos no espaço urbano. Essas classificações de contraventores serão respaldadas pela elite social e pela imprensa elitista. As leis penais não tinham um caráter universal e estabelecia a desigualdade no tratamento dos grupos sociais marginalizados, segundo a historiadora Myrian Sepúlveda. 

A partir da década de 1930, no período do governo Vargas, as classes sociais que questionavam a ordem vigente foram classificadas pelo Estado como “insurrectos ou comunistas”. Qualquer movimento de contestação sofria uma repressão brutal e as forças armadas e/ou policiais agiam extrapolando até os limites da legislação. A imprensa falava do “perigo vermelho” para demonizar esses grupos sociais que contrariavam a ordem.

Depois do Código Penal de 1940, baseado numa doutrina positivista e preocupado com a segurança nacional, e principalmente depois de 1964, os movimentos reivindicatórios serão tratados como “subversivos ou comunistas”. Dessa forma, novas constituições e legislações penais complementares, como por exemplo, o Ato Institucional nº 5, irão controlar e tipificar criminalmente as manifestações sociais que questionavam o Estado.

E agora, no século XXI, muitas práticas do passado continuam, mesmo com novas significações, uma vez que os setores médios e conservadores temem por demais perderem o controle sobre os movimentos sociais e que estes consigam estremecer o poder elitista que desfrutam há séculos. A força policial, mesmo com determinados níveis de modernização e orientações sobre os direitos humanos a partir da Constituição de 1988, é o poder de controle, com certa eficácia, disponibilizado pelo Estado contra os movimentos sociais que burlam a ordem no espaço urbano.

E muitas continuidades permanecem desde 1809. A polícia brasileira foi e ainda é, também, treinada para tratar a população como “inimiga”, mormente quando esta se insurge e reivindica direitos. Porém, a população não é uma vítima passiva, ela também participa dessa construção conflituosa com a polícia. No Brasil, movimentos sociais e força policial, historicamente, constroem relações complexas e hostis. A imprensa elitista e de direita chamam os estudantes e trabalhadores que questionam a ordem de “vândalos e terroristas”.

Em suma, tivemos uma sobreposição de conceitos e classificações excludentes e criminalizantes, na temporalidade histórica, forjados pelas legislações penais e corroborados pelos setores reacionários sobre os movimentos sociais que contrariam a ordem. “Negros escravos, vadios, mendigos, vagabundos, prostitutas, ébrios, desordeiros, insurrectos, comunistas, subversivos, vândalos e terroristas”. Entendeu por que a imprensa elitista e os setores médios conservadores brasileiros chamam os movimentos reivindicatórios do mundo árabe de “manifestantes”?

Arlan Leite, Mestrando em História pela UFRN.

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